“Em nome de Cristo,
suplicamos: reconciliai-vos com Deus” (II Cor 5, 20)
Queridos irmãos e irmãs!
O Senhor concede-nos, também neste ano, um
tempo propício para nos prepararmos para celebrar, de coração renovado, o
grande Mistério da morte e ressurreição de Jesus, cerne da vida cristã pessoal
e comunitária. Com a mente e o coração, devemos voltar continuamente a este
Mistério. Com efeito, o mesmo não cessa de crescer em nós na medida em que nos
deixarmos envolver pelo seu dinamismo espiritual e aderirmos a ele com uma
resposta livre e generosa.
O Mistério pascal, fundamento da
conversão
A alegria do cristão brota da escuta e recepção
da Boa Nova da morte e ressurreição de Jesus: o kerygma. Este compendia o
Mistério dum amor “tão real, tão verdadeiro, tão concreto, que nos proporciona
uma relação cheia de diálogo sincero e fecundo”. Quem crê neste anúncio rejeita
a mentira de que a nossa vida teria origem em nós mesmos, quando na realidade
nasce do amor de Deus Pai, da sua vontade de dar vida em abundância. Se, pelo
contrário, se presta ouvidos à voz persuasora do pai da mentira, corre-se o
risco de precipitar no abismo do absurdo, experimentando o inferno já aqui na
terra, como infelizmente dão testemunho muitos acontecimentos dramáticos da
experiência humana pessoal e coletiva.
Por isso, nesta Quaresma de 2020, quero
estender a todos os cristãos o mesmo que escrevi aos jovens na Exortação
apostólica Christus vivit: Fixa os braços abertos de Cristo
crucificado, deixa-te salvar sempre de novo. E quando te aproximares para
confessar os teus pecados, crê firmemente na sua misericórdia que te liberta de
toda a culpa. Contempla o seu sangue derramado pelo grande amor que te tem e
deixa-te purificar por ele. Assim, poderás renascer sempre de novo. A
Páscoa de Jesus não é um acontecimento do passado: pela força do Espírito Santo
é sempre atual e permite-nos contemplar e tocar com fé a carne de Cristo em tantas
pessoas que sofrem.
Urgência da conversão
É salutar uma contemplação mais profunda do
Mistério pascal, em virtude do qual nos foi concedida a misericórdia de Deus.
Com efeito, a experiência da misericórdia só é possível face a face com o
Senhor crucificado e ressuscitado, que me amou e a Si mesmo Se entregou por mim.
Um diálogo coração a coração, de amigo a amigo. Por isso mesmo, é tão
importante a oração no tempo quaresmal. Antes de ser um dever, esta expressa a
necessidade de corresponder ao amor de Deus, que sempre nos precede e sustenta.
De fato, o cristão reza ciente da sua indignidade de ser amado. A oração poderá
assumir formas diferentes, mas o que conta verdadeiramente aos olhos de Deus é
que ela escave dentro de nós, chegando a romper a dureza do nosso coração, para
o converter cada vez mais a Ele e à sua vontade.
Por isso, neste tempo favorável, deixemo-nos
conduzir como Israel ao deserto, para podermos finalmente ouvir a voz do nosso
Esposo, deixando-a ressoar em nós com maior profundidade e disponibilidade.
Quanto mais nos deixarmos envolver pela sua Palavra, tanto mais conseguiremos
experimentar a sua misericórdia gratuita por nós. Portanto não deixemos passar
em vão este tempo de graça, na presunçosa ilusão de sermos nós o dono dos
tempos e modos da nossa conversão a Ele.
A vontade apaixonada que Deus tem de
dialogar com os seus filhos
O fato de o Senhor nos proporcionar uma vez
mais um tempo favorável para a nossa conversão, não devemos jamais dá-lo como
garantido. Esta nova oportunidade deveria suscitar em nós um sentido de
gratidão e sacudir-nos do nosso torpor. Não obstante a presença do mal, por
vezes até dramática, tanto na nossa existência como na vida da Igreja e do
mundo, este período que nos é oferecido para uma mudança de rumo manifesta a
vontade tenaz de Deus de não interromper o diálogo de salvação conosco. Em
Jesus crucificado, que Deus fez pecado por nós (IICor 5, 21), esta vontade
chegou ao ponto de fazer recair sobre o seu Filho todos os nossos pecados, como
se houvesse – segundo o Papa Bento XVI –
um virar-se de Deus contra Si próprio. De fato, Deus ama também os seus
inimigos.
O diálogo que Deus quer estabelecer com cada
homem, por meio do Mistério pascal do seu Filho, não é como o diálogo atribuído
aos habitantes de Atenas, que não passavam o tempo noutra coisa senão a dizer
ou a escutar as últimas novidades (At 17, 21). Este tipo de conversa,
ditado por uma curiosidade vazia e superficial, caracteriza a mundanidade de
todos os tempos e, hoje em dia, pode insinuar-se também num uso pervertido dos
meios de comunicação.
Uma riqueza que deve ser partilhada, e
não acumulada só para si mesmo
Colocar o Mistério pascal no centro da vida
significa sentir compaixão pelas chagas de Cristo crucificado presentes nas
inúmeras vítimas inocentes das guerras, das prepotências contra a vida desde a
do nascituro até à do idoso, das variadas formas de violência, dos desastres
ambientais, da iníqua distribuição dos bens da terra, do tráfico de seres
humanos em todas as suas formas e da sede desenfreada de lucro, que é uma forma
de idolatria.
Também hoje é importante chamar os homens e
mulheres de boa vontade à partilha dos seus bens com os mais necessitados
através da esmola, como forma de participação pessoal na edificação dum mundo
mais justo. A partilha, na caridade, torna o homem mais humano; com a
acumulação, corre o risco de embrutecer, fechado no seu egoísmo. Podemos e
devemos ir mais além, considerando as dimensões estruturais da economia. Como várias vezes se referiu no magistério da
Igreja, a política é uma forma eminente de caridade. E sê-lo-á igualmente
ocupar-se da economia com o mesmo espírito evangélico, que é o espírito das
Bem-aventuranças.
Invoco a intercessão de Maria Santíssima sobre
a próxima Quaresma, para que acolhamos o apelo a deixar-nos reconciliar com
Deus, fixemos o olhar do coração no Mistério pascal e nos convertamos a um
diálogo aberto e sincero com Deus. Assim, poderemos tornar-nos aquilo que Cristo
diz dos seus discípulos: sal da terra e luz do mundo.
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