57. Esta parábola recolhe uma
perspectiva de séculos. Pouco depois da narração da criação do mundo e do ser
humano, a Bíblia propõe o desafio das relações entre nós. Caim elimina o seu
irmão Abel, e ressoa a pergunta de Deus: “Onde está Abel, teu irmão?”
A resposta é a mesma que damos nós muitas vezes: “Sou, porventura, guarda
do meu irmão?” (Gn 4, 9). Com a sua pergunta, Deus coloca
em questão todo o tipo de determinismo ou fatalismo que pretenda justificar
como única resposta possível a indiferença. E, ao invés, habilita-nos a criar
uma cultura diferente, que nos conduza a superar as inimizades e cuidar uns dos
outros.
58. O livro de Jó invoca o fato de
ter um mesmo Criador como base para sustentar alguns direitos em comum: “Pois
Aquele que me criou no ventre, também o criou a ele; um só nos formou a ambos
no seio materno” (31, 15). Muitos séculos depois, Santo Irineu de Lião
expressará o mesmo conceito recorrendo à imagem da melodia: “Assim, quem ama
a verdade não deve deixar-se enganar pela diferença entre cada um dos sons, nem
imaginar que um músico seja o artífice e o criador deste som, e outro o
artífice e o criador do outro (…), mas há de pensar que um único músico os
produziu a ambos”.
59. Nas tradições judaicas, o
dever de amar o outro e cuidar dele parecia limitar-se às relações entre os
membros duma mesma nação. O antigo preceito “amarás o teu próximo como a
ti mesmo” (Lv 19, 18) geralmente entendia-se como referido
aos compatriotas. Todavia, especialmente no judaísmo que se desenvolveu fora da
terra de Israel, as fronteiras foram-se ampliando. Aparece o convite a não
fazer aos outros o que não queres que te façam a ti (cf. Tob 4,
15). E a propósito dizia, no século I (a.C.), o sábio Hillel: “Isto é a Lei e
os Profetas. Todo o resto é comentário”. O desejo de imitar o
comportamento divino levou a superar aquela tendência de limitar o amor aos
mais próximos: “A compaixão do homem tem por objeto o próximo, mas a
misericórdia divina estende-se a todo o ser vivo” (Eclo 18,
12).
60. O preceito de Hillel recebeu
uma formulação positiva no Novo Testamento: “O que quiserdes que vos
façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas”
(Mt 7, 12). Este apelo é universal, tende a abraçar a todos, apenas
pela sua condição humana, porque o Altíssimo, o Pai do Céu, “faz com que
o Sol se levante sobre os bons e os maus” (Mt 5, 45). Em
consequência, exige-se: “Sede misericordiosos como o vosso Pai é
misericordioso” (Lc 6, 36).
61. Como motivo para alargar o
coração a fim de não excluir o estrangeiro, invoca-se a memória que o povo
judeu conserva de ter vivido como estrangeiro no Egito. E tal motivo aparece já
nos textos mais antigos da Bíblia: “Não usarás de violência contra o
estrangeiro residente nem o oprimirás, porque foste estrangeiro residente na
terra do Egito” (Ex 22, 20). “Não oprimirás um
estrangeiro residente; vós conheceis a vida do estrangeiro residente, porque
fostes estrangeiros residentes na terra do Egito” (Ex 23,
9). “Se um estrangeiro vier residir contigo na tua terra, não o
oprimirás. O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos vossos
compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes estrangeiros na terra
do Egito” (Lv 19, 33-34). “Quando vindimares a tua
vinha, não rebusques o que ficou; deixa-o para o estrangeiro, o órfão e a
viúva. Lembra-te que foste escravo na terra do Egito” (Dt 24,
21-22).
No Novo Testamento, ressoa intensamente o apelo ao
amor fraterno: “Toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: ama
o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5, 14). “Quem ama
o seu irmão permanece na luz e não corre perigo de tropeçar. Mas quem tem ódio
ao seu irmão está nas trevas” (1 Jo 2, 10-11). “Nós
sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não
ama, permanece na morte” (1 Jo 3, 14). “Aquele que
não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1
Jo 4, 20).
62. Mesmo esta proposta de amor
podia ser mal compreendida. Foi por alguma razão que, perante a tentação das
primeiras comunidades cristãs criarem grupos fechados e isolados, São Paulo
exortava os seus discípulos a ter caridade uns para com os outros e para com
todos (1 Ts 3, 12) e, na comunidade de João, pedia-se que
fossem bem recebidos os irmãos, “mesmo sendo estrangeiros” (3
Jo 5). Esse contexto ajuda a entender o valor da parábola do bom
samaritano: ao amor não lhe interessa se o irmão ferido vem daqui ou dacolá.
Com efeito, é o amor que rompe as cadeias que nos isolam e separam, lançando
pontes; amor que nos permite construir uma grande família onde todos podemos nos
sentir em casa (…). Amor que sabe de compaixão e dignidade.