"Mal teu servo Simpliciano me
contou a conversão de Vitorino, ardi no desejo de imitá-lo; aliás, era esta a
finalidade da narração de Simpliciano. Depois acrescentou que nos tempos do imperador
Juliano, uma lei proibia aos cristãos ensinar literatura e oratória, e
Vitorino, dócil à lei, preferiu abandonar a escola de palradores a abandonar
teu Verbo, que torna eloquentes as línguas dos meninos. Não só me pareceu
corajoso como afortunado, por ter encontrado ocasião de se consagrar por ti.
Por isso eu suspirava, acorrentado não com os ferros de uma vontade estranha,
mas por minha férrea vontade.
O inimigo dominava meu
querer, e dele forjava uma corrente com a qual me mantinha cativo. Da vontade
perversa nasce a paixão, e desta satisfeita procede o hábito, e do hábito não contrariado
provém a necessidade, e com estes anéis enlaçados entre si – por isso lhes
chamei corrente – me mantinha preso em dura servidão. A nova vontade, que
despontava em mim, de te servir sem interesse, de me alegrar em ti, ó meu Deus,
única alegria verdadeira, ainda não era capaz de vencer a vontade antiga e
inveterada. Deste modo minhas duas vontades, a velha e a nova, a carnal e a
espiritual, lutavam entre si e, nessa luta, dilaceravam-me a alma.
Entendi, por experiência
própria, o que havia lido: a carne tem desejos contra o espírito, e o espírito
contra a carne. Eu vivia ao mesmo tempo a ambos, embora mais o que aprovava em mim
do que o que em mim desaprovava. Com efeito, nesta última parte de mim eu era
passivo e constrangido, mais do que ativo e livre.
E,contudo, o hábito que se
impunha contra mim vinha de mim mesmo, pois fora
voluntariamente que eu
chegara onde não queria. E quem poderia protestar legitimamente, se um castigo
justo segue o pecador?
Eu já não tinha aquela
desculpa, com a qual persuadia-me de que, se ainda não
desprezava o mundo para te
servir, era porque não tinha visão clara da verdade, uma vez que agora já a
conhecia de modo indiscutível. Mas, ainda apegado à terra, recusava-me a
combater em tuas fileiras, e temia ver-me livre dos meus laços, quando devia
temer estar por eles atado.
Assim, sentia-me docemente
oprimido pelo peso do mundo, como em um sonho, e os pensamentos com que
meditava em ti eram semelhantes aos esforços dos que desejam despertar, mas,
vencidos pela sonolência, voltam dormir. Não há ninguém que queira dormir sempre,
e segundo dita o bom senso, é melhor estar desperto que dormir. Contudo, às
vezes retarda-se o despertar, quando o torpor torna os membros pesados, e,
mesmo a contragosto, continua-se a dormir mesmo depois de chegada a hora de
despertar. Assim eu estava certo que era melhor entregar-me a teu amor que
ceder à minha paixão. O primeiro me agradava, me dominava; o segundo me
encantava, me prendia.
Já não tinha o que responder
quando me dizias: “Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e
Cristo te há de iluminar”. E quando por todos os meios me mostrava a verdade do
que dizias, e de que eu estava convencido, não tinha absolutamente nada para
responder, senão umas palavras preguiçosas e sonolentas: Um momento...
Depois... Um pouquinho mais...
Mas este pouquinho não tinha
fim, e este momento se ia prolongando.
Em vão me deleitava em tua
lei, segundo o homem interior, porque em meus membros outra lei combatia a lei
de meu espírito, mantendo-me cativo sob a lei do pecado que estavas em
meus membros. Com efeito, a
lei do pecado é a violência do hábito, pelo qual a alma é arrastada e presa,
mesmo contra sua vontade, merecidamente porém, pois se deixa arrastar por
vontade própria. Pobre de mim! Quem poderia libertar-me deste corpo de morte
senão tua graça, por Cristo, nosso Senhor?"
Confissões Livro VIII 5,10
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