Em janeiro de 2018, o Papa Francisco aprovou a
beatificação de Dom Pierre Claverie e dos seus dezoito companheiros mártires. O
homicídio de Pierre Claverie, dominicano, bispo de Oran (Argélia), foi o último
de uma série de trágicos assassinatos que lançaram no luto a Igreja da Argélia,
entre 1994 e 1996. As outras vítimas foram sete monges trapistas, quatro
missionários de África, um frade marista e várias religiosas pertencentes a
diversas congregações.
A sua morte inscreve-se numa década negra,
durante a qual entre cento e cinquenta mil e duzentas mil pessoas foram mortas,
quer pela violência quer pela repressão religiosa. E é precisamente a sua livre
opção de permanecer ali, por amor a Cristo e à Igreja, apesar da referida
violência, que nos permite hoje qualificar esses cristãos como mártires.
Pierre Claverie nasceu em Argel no ano de 1938:
era filho da Argélia colonial. Na idade adulta, confessou que tinha vivido toda
a sua juventude no meio dos árabes, sem nunca se ter encontrado com eles: Passei
a minha infância em Argel, num bairro popular desta cosmopolita cidade
mediterrânica. Ao contrário de outros europeus, nascidos no campo ou em cidades
pequenas, nunca tive amigos árabes. Não éramos racistas, apenas indiferentes,
ignorando a maior parte da população deste país. Os árabes faziam parte da
paisagem dos nossos passeios, do pano de fundo dos nossos encontros e das
nossas vidas. Nunca foram nossos companheiros... Sendo cristão e escoteiro, tive
de escutar numerosos sermões sobre o amor ao próximo, mas nunca me tinha
apercebido de que os árabes também eram o meu próximo. Foi necessário haver uma
guerra para que a bolha rebentasse, diria muito mais tarde,
reconhecendo que tinha vivido toda a sua juventude dentro de uma “bolha
colonial”.
Esta tomada de consciência, que correspondeu ao
deflagrar da guerra da Argélia e à proclamação da sua independência, constituiu
para ele um verdadeiro ponto de virada, que o faria ingressar, em 1958, na vida
religiosa e na ordem dominicana.
Estudou em Saulchoir, com os melhores
professores, os teólogos dominicanos que prepararam a eclesiologia do Concílio
Vaticano II. Saiu de lá em 1967, com uma sólida formação intelectual e
espiritual, que mais tarde se viria a revelar preciosa. Das cartas que escreveu
à sua família emerge a sua precoce maturidade intelectual:
Esta manhã, durante a oração, descobri
finalmente o Deus Trindade, que sempre me tinha parecido, até então, uma
argúcia de teólogo. Creio que é o essencial do Cristianismo: ainda mais do que
a vida de Jesus, do que o seu ensinamento, do que a sua Igreja, Ele revela-nos
Deus, não só como um Deus Pai, mas transmitindo-nos a imagem daquilo que somos
chamados a ser: aqueles que participam numa corrente de amor que une o Pai ao
Filho através do Espírito Santo, escreveria ele em maio de 1959.
Ordenado sacerdote, aceitou com alegria
juntar-se à pequena comunidade dominicana de Argel que, orientada pelo cardeal
Duval, contribuía para a existência de um novo tipo de Igreja, uma Igreja para
um país maioritariamente muçulmano. Por esse motivo, aprendeu tão bem árabe,
que mais tarde o pôde ensinar. Mas, acima de tudo, aprendeu a Argélia,
conquistando assim uma magnífica rede de amigos argelinos que seriam muito
importantes para ele. O país deu início ao percurso de reconstrução após uma
guerra muitíssimo sangrenta (1954-1962): havia muito a fazer em matéria de
educação e de formação dos líderes.
Pierre Claverie também contribuiu, juntamente
com os sacerdotes e as religiosas da Argélia, que se tinham colocado
inteiramente ao serviço da formação de cooperantes, empenhados no
desenvolvimento do país. Foi um período muito feliz da sua vida.
A sua sólida formação levou-o a participar de
forma decisiva na reflexão teológica de uma Igreja que devia repensar o sentido
da sua presença. Ela não estava ali para fazer proselitismo entre os muçulmanos.
Pelo contrário, através do testemunho da fé e da sua ação gratuita ao serviço
do país e dos mais humildes, a Igreja podia oferecer uma presença atuante do
amor evangélico e contribuir para curar as feridas herdadas do passado colonial
e da guerra da libertação.
Só a fecundidade do testemunho e a obra do
Espírito Santo podem converter os corações e suscitar a liberdade em relação a
Cristo e à sua Igreja. Nesse sentido, Pierre Claverie assumiu a direção do
centro de estudos diocesano de Argel e colaborou com os bispos na redação de
documentos teológicos que tentavam articular o sentido de uma presença cristã
num mundo muçulmano.
Em 1981, a sua forte personalidade e o seu
carisma pessoal valeram-lhe a nomeação para bispo de Oran, na zona oeste do
país. A sua diocese contava com poucos fiéis, mas era internacional: Pierre
viria a sentir um grande amor por esse papel de artesão da comunhão, não só
entre cristãos de diversas origens, mas também com os amigos muçulmanos da
Igreja. Optou por disponibilizar os locais e as estruturas da sua diocese para
satisfazer as necessidades da região: bibliotecas para alunos e estudantes, um
centro de acolhimento para pessoas portadoras de deficiência, um centro de
formação para mulheres. Com os seus companheiros muçulmanos, estabeleceu
relações de confiança e de amizade que se viriam a revelar preciosas durante a
trágica década dos anos noventa.
Os fiéis cristãos são pouco numerosos, mas um
verdadeiro testemunho cristão pode ser dado a todos os muçulmanos com os quais
os cristãos vivem e trabalham diariamente. Pierre Claverie privilegiou o
encontro, pois este implicava as pessoas. Afirmava ele que nada se podia fazer
se não se começasse por criar laços de confiança e de amizade. São estes que
permitem fazer, imediatamente, coisas juntos, enfrentar desafios comuns e
também questões mais complexas.
A partir de 1990, a Argélia precipitou-se numa
década de violência. A tardia abertura política ao multipartidarismo, após
vinte e cinco anos de regime de partido único, favoreceu o surgimento dos
partidos religiosos radicais. No momento das eleições legislativas locais,
estes obtiveram a maioria dos votos e quase tinham chegado ao poder quando o
regime militar decidiu, em 1992, interromper o processo eleitoral para evitar
que se instaurasse uma ditadura religiosa. Frustrados por não terem alcançado o
poder através das eleições, os fanáticos fundamentalistas tentaram tomá-lo
pelas armas. Começaram por assassinar centenas de representantes do Estado
(juízes, polícias), passando depois às figuras simbólicas de uma sociedade
civil aberta (jornalistas, escritores) e, por fim, voltaram-se contra os
estrangeiros.
O homicídio dos dois primeiros religiosos
cristãos, em maio de 1994, constituiu um trauma para todos. O dos sete monges
trapistas, em 1996, escandalizou a grande maioria dos muçulmanos.
Pierre Claverie foi o último dos cristãos
assassinados. Devemos acrescentar que ele não só tinha optado por permanecer no
país, mas também e sobretudo continuou a falar com coragem, manifestando-se
publicamente a favor de uma Humanidade plural, não exclusiva. Nós estamos
precisamente no nosso posto, pois só neste lugar se pode entrever a luz da
Ressurreição e, com ela, a esperança de uma renovação do nosso mundo.
Foi assassinado no dia 1 de agosto de 1996,
juntamente com um amigo muçulmano, Mohamed Bouchikhi, que tinha tomado a
decisão de ficar com ele, apesar dos riscos. A sua morte chocou os cristãos,
mas também muitos argelinos muçulmanos que, nas suas exéquias, afirmaram ter
vindo para chorar aquele que também era o seu bispo.
Sua memória é celebrada no dia 01 de agosto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário