terça-feira, 16 de março de 2021

Fratelli tutti - Capítulo 3 - Pensar e gerar um mundo aberto: Amor universal que promove as pessoas n°s 106 a 111

106. Para se caminhar rumo à amizade social e à fraternidade universal, há que fazer um reconhecimento basilar e essencial: dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância. Se cada um vale assim tanto, temos de dizer clara e firmemente que «o simples fato de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente». Trata-se de um princípio elementar da vida social que é, habitualmente e de várias maneiras, ignorado por quantos sentem que não convém à sua visão do mundo ou não serve os seus objetivos.

107. Todo o ser humano tem direito de viver com dignidade e desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito fundamental. Todos o possuem, mesmo quem é pouco eficiente porque nasceu ou cresceu com limitações. De fato, isto não diminui a sua dignidade imensa de pessoa humana, que se baseia, não nas circunstâncias, mas no valor do seu ser. Quando não se salvaguarda este princípio elementar, não há futuro para a fraternidade nem para a sobrevivência da humanidade.

108. Há sociedades que acolhem apenas parcialmente este princípio. Aceitam que haja possibilidades para todos, mas, suposto isto, defendem que tudo depende de cada um. Segundo esta perspectiva parcial, não teria sentido «investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na vida». Investir a favor das pessoas frágeis pode não ser rentável, pode implicar menor eficiência; requer um Estado presente e ativo e instituições da sociedade civil que ultrapassem a liberdade dos mecanismos eficientistas de certos sistemas económicos, políticos ou ideológicos, porque estão verdadeiramente orientados em primeiro lugar para as pessoas e o bem comum.

109. Alguns nascem em famílias com boas condições econômicas, recebem boa educação, crescem bem alimentados, ou possuem por natureza notáveis capacidades. Seguramente não precisarão dum Estado ativo, e apenas pedirão liberdade. Mas, obviamente, não se aplica a mesma regra a uma pessoa com deficiência, a alguém que nasceu num lar extremamente pobre, a alguém que cresceu com uma educação de baixa qualidade e com reduzidas possibilidades para cuidar adequadamente das suas enfermidades. Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para tais pessoas, e a fraternidade não passará duma palavra romântica.

110. A verdade é que «a simples proclamação da liberdade econômica, enquanto as condições reais impedem que muitos possam efetivamente ter acesso a ela (...), torna-se um discurso contraditório». Palavras como liberdade, democracia ou fraternidade esvaziam-se de sentido. Na realidade, «enquanto o nosso sistema econômico-social ainda produzir uma só vítima que seja e enquanto houver uma pessoa descartada, não poderá haver a festa da fraternidade universal». Uma sociedade humana e fraterna é capaz de preocupar-se por garantir, de modo eficiente e estável, que todos sejam acompanhados no percurso da sua vida, não apenas para assegurar as suas necessidades básicas, mas para que possam dar o melhor de si mesmos, ainda que o seu rendimento não seja o melhor, mesmo que sejam lentos, embora a sua eficiência não seja relevante.

111. A pessoa humana, com os seus direitos inalienáveis, está naturalmente aberta a criar vínculos. Habita nela, radicalmente, o apelo a transcender-se a si mesma no encontro com os outros. «É preciso, porém, ter cuidado para não cair em alguns equívocos que podem surgir de um errado conceito de direitos humanos e de um abuso paradoxal dos mesmos. De fato, há hoje a tendência para uma reivindicação crescente de direitos individuais – sinto-me tentado a dizer individualistas –, que esconde uma conceção de pessoa humana separada de todo o contexto social e antropológico, quase como uma «mónada» (monás) cada vez mais insensível (…). Na realidade, se o direito de cada um não está harmoniosamente ordenado para o bem maior, acaba por conceber-se sem limitações e, por conseguinte, tornar-se fonte de conflito e violência».

segunda-feira, 15 de março de 2021

Fratelli tutti - Capítulo 3 - Pensar e gerar um mundo aberto: Liberdade, igualdade e fraternidade n°s 103 a 105

103. A fraternidade não é resultado apenas de situações onde se respeitam as liberdades individuais, nem mesmo da prática duma certa equidade. Embora sejam condições que a tornam possível, não bastam para que surja como resultado necessário a fraternidade. Esta tem algo de positivo a oferecer à liberdade e à igualdade. Que sucede quando não há a fraternidade conscientemente cultivada, quando não há uma vontade política de fraternidade, traduzida numa educação para a fraternidade, o diálogo, a descoberta da reciprocidade e enriquecimento mútuo como valores? Sucede que a liberdade se atenua, predominando assim uma condição de solidão, de pura autonomia para pertencer a alguém ou a alguma coisa, ou apenas para possuir e desfrutar. Isso não esgota de maneira alguma a riqueza da liberdade, que se orienta sobretudo para o amor.

104. Tampouco se alcança a igualdade definindo, abstratamente, que todos os seres humanos são iguais, mas resulta do cultivo consciente e pedagógico da fraternidade. Aqueles que são capazes apenas de ser sócios, criam mundos fechados. Em semelhante esquema, que sentido pode ter a pessoa que não pertence ao círculo dos sócios e chega sonhando com uma vida melhor para si e sua família?

105. O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade. Nem pode sequer preservar-nos de tantos males, que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer. Ilude. Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar à rédea solta as próprias ambições, como se, acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum.

domingo, 14 de março de 2021

Fratelli tutti - Capítulo 3 - Pensar e gerar um mundo aberto: Superar um mundo de sócios nºs 101 e 102

101. Retomemos agora a parábola do bom samaritano que ainda tem muito a propor-nos.

Havia um homem ferido no caminho. As personagens que passavam ao lado dele não se concentravam na chamada íntima a fazer-se próximos, mas na sua função, na posição social que ocupavam, numa profissão prestigiosa na sociedade. Sentiam-se importantes para a sociedade de então, e o que mais as preocupava era o papel que deviam desempenhar. O homem ferido e abandonado no caminho era um incômodo para este projeto, uma interrupção; e tratava-se de alguém que, por sua vez, não ocupava função alguma. Era um “ninguém”, não pertencia a um grupo considerado notável, não tinha papel algum na construção da história. Entretanto o generoso samaritano opunha-se a estas classificações fechadas, embora ele mesmo estivesse fora de qualquer uma destas categorias, sendo simplesmente um estranho sem um lugar próprio na sociedade. Assim, livre de todas as etiquetas e estruturas, foi capaz de interromper a sua viagem, mudar os seus programas, estar disponível para se abrir à surpresa do homem ferido que precisava dele.

102. Que reação poderia provocar hoje essa narração, num mundo onde constantemente aparecem e crescem grupos sociais, que se agarram a uma identidade que os separa dos outros? Como pode aquela impressionar pessoas que tendem a organizar-se de maneira a impedir qualquer presença estranha que possa turbar tal identidade e esta organização autodefensiva e autorreferencial? Neste esquema, fica excluída a possibilidade de fazer-se próximo, sendo possível apenas ser próximo de quem me permite consolidar os benefícios pessoais. Assim o termo “próximo” perde todo o significado, fazendo sentido apenas a palavra “sócio”, aquele que é associado para determinados interesses.