Desejo chamar a atenção para duas falsificações da
santidade que poderiam extraviar-nos: o gnosticismo e o pelagianismo.
O pelagianismo atual
Com o passar do tempo, muitos começaram a reconhecer que
não é o conhecimento que nos torna melhores ou santos, mas a vida que levamos.
O problema é que isto foi sutilmente degenerando, de modo que o mesmo erro dos
gnósticos foi simplesmente transformado, mas não superado.
Com efeito, o poder que os gnósticos atribuíam à
inteligência, alguns começaram a atribuí-lo à vontade humana, ao esforço
pessoal. Surgiram, assim, os pelagianos. Já não era a inteligência que ocupava
o lugar do mistério e da graça, mas a vontade. Esquecia-se que “isto não
depende daquele que quer nem daquele que se esforça por alcançá-lo, mas de Deus
que é misericordioso” (Rm 9, 16) e que Ele “nos amou primeiro” (1 Jo 4,
19).
Quem se conforma a esta mentalidade, embora fale da graça
de Deus com discursos edulcorados, no fundo, só confia nas suas próprias forças
e sente-se superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser
irredutivelmente fiel a um certo estilo católico. Quando alguns deles se dirigem aos frágeis, dizendo-lhes que se pode
tudo com a graça de Deus, basicamente costumam transmitir a ideia de que tudo
se pode com a vontade humana, como se esta fosse algo puro, perfeito, onipotente,
a que se acrescenta a graça. Pretende-se ignorar que nem todos podem tudo, e
que, nesta vida, as fragilidades humanas não são curadas, completamente e duma
vez por todas, pela graça. Em todo o caso, como ensinava Santo Agostinho, Deus convida-te a fazer o que podes e a
pedir o que não podes; ou então a dizer humildemente ao Senhor: dai-me o
que me ordenais e ordenai-me o que quiserdes.
No fundo, a falta dum reconhecimento sincero, pesaroso e
orante dos nossos limites é que impede a graça de atuar melhor em nós, pois não
lhe deixa espaço para provocar aquele bem possível que se integra num caminho
sincero e real de crescimento. A
graça, precisamente porque supõe a nossa natureza, não nos faz improvisamente
super-homens. Pretendê-lo seria confiar demasiado em nós próprios. Com
efeito, se não reconhecemos a nossa realidade concreta e limitada, não
poderemos ver os passos reais e possíveis que o Senhor nos pede em cada
momento, depois de nos ter atraído e tornado idóneos com o seu dom. A graça
atua historicamente e, em geral, toma-nos e transforma-nos de forma
progressiva. Por isso, se recusarmos esta modalidade histórica e progressiva,
de fato podemos chegar a negá-la e bloqueá-la, embora a exaltemos com as nossas
palavras.
Quando Deus Se
dirige a Abraão, diz-lhe: «Eu sou o Deus supremo. Anda na minha presença e sê
perfeito» (Gn 17, 1). Para poder ser perfeitos, como é do seu agrado,
precisamos de viver humildemente na presença d’Ele, envolvidos pela sua glória;
necessitamos de andar em união com Ele, reconhecendo o seu amor constante na
nossa vida. Há que perder o medo desta presença que só nos pode fazer bem. É o
Pai que nos deu vida e nos ama tanto. Uma vez que O aceitamos e deixamos de
pensar a nossa existência sem Ele, desaparece a angústia da solidão.
A Igreja ensinou
repetidamente que não somos justificados pelas nossas obras ou pelos nossos
esforços, mas pela graça do Senhor que toma a iniciativa.
Os santos evitam de pôr a confiança nas suas ações: “Ao
anoitecer desta vida, aparecerei diante de Vós com as mãos vazias, pois não Vos
peço, Senhor, que conteis as minhas obras. Todas as nossas justiças têm manchas
aos vossos olhos.” (Santa Teresinha do Menino Jesus)
Esta é uma das grandes convicções definitivamente
adquiridas pela Igreja e está tão claramente expressa na Palavra de Deus que
fica fora de qualquer discussão. Esta verdade, tal como o supremo mandamento do
amor, deveria caracterizar o nosso estilo de vida, porque bebe do coração do
Evangelho e convida-nos não só a aceitá-la com a mente, mas também a
transformá-la numa alegria contagiosa.
Ainda há cristãos que insistem em seguir outro caminho: o
da justificação pelas suas próprias forças, o da adoração da vontade humana e
da própria capacidade, que se traduz numa auto complacência egocêntrica e
elitista, desprovida do verdadeiro amor. Manifesta-se em muitas atitudes
aparentemente diferentes entre si: a obsessão pela lei, o fascínio de exibir
conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da
doutrina e do prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos
práticos, a atração pelas dinâmicas de autoajuda e realização auto referencial.
É nisto que alguns cristãos gastam as suas energias e o seu tempo, em vez de se
deixarem guiar pelo Espírito no caminho do amor, apaixonarem-se por comunicar a
beleza e a alegria do Evangelho e procurarem os afastados nessas imensas
multidões sedentas de Cristo.
Para evitar isso, é bom recordar frequentemente que
existe uma hierarquia das virtudes, que nos convida a buscar o essencial. A
primazia pertence às virtudes teologais, que têm Deus como objeto e motivo. E,
no centro, está a caridade. São Paulo diz que o que conta verdadeiramente é “a
fé que atua pelo amor” (Gal 5, 6). Somos chamados a cuidar solicitamente
da caridade: “quem ama o próximo cumpre plenamente a Lei. (...) Assim, é no
amor que está o pleno cumprimento da lei” (Rm 13, 8.10). É que toda a Lei
se resume neste único preceito: “Ama o teu próximo como a ti mesmo” (Gal 5,
14).
Por outras
palavras, no meio da densa selva de preceitos e prescrições, Jesus abre uma
brecha que permite vislumbrar dois rostos: o do Pai e o do irmão. Não nos dá
mais duas fórmulas ou dois preceitos; entrega-nos dois rostos, ou melhor, um
só: o de Deus que se reflete em muitos, porque em cada irmão, especialmente no
mais pequeno, frágil, inerme e necessitado, está presente a própria imagem de
Deus.
Que o Senhor liberte a Igreja das novas formas de
gnosticismo e pelagianismo que a complicam e detêm no seu caminho para a
santidade! Estes desvios manifestam-se de formas diferentes, segundo o
temperamento e as caraterísticas próprias. Por isso, exorto cada um a questionar-se
e a discernir diante de Deus a maneira como possam estar a manifestar-se na sua
vida.
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