A Palavra é um dom. O outro é um dom
Amados irmãos e irmãs!
A Quaresma é
um novo começo, uma estrada que leva a um destino seguro: a Páscoa de
Ressurreição, a vitória de Cristo sobre a morte. E este tempo não cessa de nos
dirigir um forte convite à conversão: o
cristão é chamado a voltar para Deus «de todo o coração», não se
contentando com uma vida medíocre, mas crescendo na amizade do Senhor. Jesus é
o amigo fiel que nunca nos abandona, pois, mesmo quando pecamos, espera
pacientemente pelo nosso regresso a Ele e, com esta espera, manifesta a sua
vontade de perdão.
A
Quaresma é o momento favorável para intensificarmos a vida espiritual através
dos meios santos que a Igreja nos propõe: o
jejum, a oração e a esmola. Na base de tudo isto, porém, está a Palavra de
Deus, que somos convidados a ouvir e meditar com maior assiduidade neste tempo.
Aqui queria deter-me, em particular, na parábola do homem rico e do pobre
Lázaro. Deixemo-nos inspirar por esta página tão significativa, que nos dá a
chave para compreender como temos de agir para alcançarmos a verdadeira
felicidade e a vida eterna, incitando-nos a uma sincera conversão.
1. O outro é um dom
A parábola
inicia com a apresentação dos dois personagens principais, mas quem aparece
descrito de forma mais detalhada é o pobre: encontra-se numa condição
desesperada e sem forças para se solevar, jaz à porta do rico na esperança de
comer as migalhas que caem da mesa dele, tem o corpo coberto de chagas, que os
cães vêm lamber. Enfim, o quadro é sombrio, com o homem degradado e humilhado.
A cena
revela-se ainda mais dramática, quando se considera que o pobre se chama Lázaro, um nome muito promissor,
pois significa, literalmente, «Deus ajuda». Não se trata duma pessoa anônima;
antes, tem traços muito concretos e aparece como um indivíduo a quem podemos
atribuir uma história pessoal. Enquanto Lázaro é como que invisível para o
rico, a nossos olhos aparece como um ser conhecido e quase de família, torna-se
um rosto; e, como tal, é um dom, uma riqueza inestimável, um ser querido,
amado, recordado por Deus, apesar de a sua condição concreta ser a duma escória
humana.
Lázaro
ensina-nos que o outro é um dom. A justa
relação com as pessoas consiste em reconhecer, com gratidão, o seu valor. O
próprio pobre à porta do rico não é um empecilho fastidioso, mas um apelo a
converter-se e mudar de vida. O primeiro convite que nos faz esta parábola é o
de abrir a porta do nosso coração ao outro, porque cada pessoa é um dom, seja
ela o nosso vizinho ou o pobre desconhecido. A Quaresma é um tempo propício
para abrir a porta a cada necessitado e nele reconhecer o rosto de Cristo. Cada
um de nós encontra-o no próprio caminho. Cada vida que se cruza conosco é um
dom e merece aceitação, respeito, amor. A Palavra de Deus ajuda-nos a abrir os
olhos para acolher a vida e amá-la, sobretudo quando é frágil. Mas, para se
poder fazer isto, é necessário tomar a sério também aquilo que o Evangelho nos
revela a propósito do homem rico.
2. O pecado cega-nos
A parábola põe
em evidência, sem piedade, as contradições em que vive o rico. Este personagem,
ao contrário do pobre Lázaro, não tem um nome, é qualificado apenas como
«rico». A sua opulência manifesta-se nas roupas, de um luxo exagerado, que usa.
De fato, a púrpura era muito apreciada, mais do que a prata e o ouro, e por
isso se reservava para os deuses e os reis. O linho fino era um linho especial
que ajudava a conferir à posição da pessoa um caráter quase sagrado. Assim, a
riqueza deste homem é excessiva, inclusive porque exibida habitualmente: «Fazia
todos os dias esplêndidos banquetes». Entrevê-se nele, dramaticamente, a
corrupção do pecado, que se realiza em três momentos sucessivos: o amor ao
dinheiro, a vaidade e a soberba.
O apóstolo
Paulo diz que «a raiz de todos os males é a ganância do dinheiro». Esta é o
motivo principal da corrupção e uma fonte de invejas, contendas e suspeitas. O
dinheiro pode chegar a dominar-nos até ao ponto de se tornar um ídolo tirânico.
Em vez de instrumento ao nosso dispor para fazer o bem e exercer a
solidariedade com os outros, o dinheiro pode-nos subjugar, a nós e ao mundo
inteiro, numa lógica egoísta que não deixa espaço ao amor e dificulta a paz.
Depois, a
parábola mostra-nos que a ganância do rico fá-lo vaidoso. A sua personalidade
vive de aparências, fazendo ver aos outros aquilo que se pode permitir. Mas a
aparência serve de máscara para o seu vazio interior. A sua vida está
prisioneira da exterioridade, da dimensão mais superficial e efêmera da
existência.
O degrau mais
baixo desta deterioração moral é a soberba. O homem veste-se como se fosse um
rei, simula a posição dum deus, esquecendo-se que é um simples mortal. Para o
homem corrompido pelo amor das riquezas, nada mais existe além do próprio eu e,
por isso, as pessoas que o rodeiam não caiem sob a alçada do seu olhar. Assim o
fruto do apego ao dinheiro é uma espécie de cegueira: o rico não vê o pobre
esfomeado, chagado e prostrado na sua humilhação.
Olhando para
esta figura, compreende-se por que motivo o Evangelho é tão claro ao condenar o
amor ao dinheiro: «Ninguém pode servir a
dois senhores: ou não gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a
um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro».
3. A Palavra é um dom
O Evangelho do
homem rico e do pobre Lázaro ajuda a prepararmo-nos bem para a Páscoa que se
aproxima. A liturgia de Quarta-Feira de Cinzas convida-nos a viver uma
experiência semelhante à que faz de forma tão dramática o rico. Quando impõe as
cinzas sobre a cabeça, o sacerdote repete estas palavras: «Lembra-te, homem, que és pó da terra e à terra hás de voltar».
De fato, tanto o rico como o pobre morrem, e a parte principal da parábola
desenrola-se no Além. Dum momento para o outro, os dois personagens descobrem
que nós «nada trouxemos ao mundo e nada
podemos levar dele».
Também o nosso
olhar se abre para o Além, onde o rico tece um longo diálogo com Abraão, a quem
trata por «pai», dando mostras de fazer parte do povo de Deus. Este detalhe
torna ainda mais contraditória a sua vida, porque até agora nada se disse da
sua relação com Deus. Com efeito, na sua vida, não havia lugar para Deus, sendo
ele mesmo o seu único deus.
Só no meio dos
tormentos do Além é que o rico reconhece Lázaro e queria que o pobre aliviasse
os seus sofrimentos com um pouco de água. Os gestos solicitados a Lázaro são
semelhantes aos que o rico poderia ter feito, mas nunca fez. Abraão, porém,
explica-lhe: «Recebeste os teus bens na
vida, enquanto Lázaro recebeu somente males. Agora, ele é consolado, enquanto
tu és atormentado». No Além, restabelece-se uma certa equidade, e os males
da vida são contrabalançados pelo bem.
Mas a parábola continua, apresentando
uma mensagem para todos os cristãos. De fato o rico, que ainda tem irmãos
vivos, pede a Abraão que mande Lázaro avisá-los; mas Abraão respondeu: «Têm Moisés e os Profetas; que os ouçam».
E, à sucessiva objeção do rico, acrescenta: «Se não dão ouvidos a Moisés e aos Profetas, tão-pouco se deixarão
convencer, se alguém ressuscitar dentre os mortos».
Deste modo se
patenteia o verdadeiro problema do rico: a raiz dos seus males é não
dar ouvidos à Palavra de Deus; isto levou-o a deixar de amar a Deus e,
consequentemente, a desprezar o próximo. A Palavra de Deus é uma força viva,
capaz de suscitar a conversão no coração dos homens e orientar de novo a pessoa
para Deus. Fechar o coração ao dom de Deus que fala, tem como consequência
fechar o coração ao dom do irmão.
Amados irmãos
e irmãs, a Quaresma é o tempo favorável para nos renovarmos, encontrando Cristo
vivo na sua Palavra, nos Sacramentos e no próximo. O Senhor – que, nos quarenta
dias passados no deserto, venceu as ciladas do Tentador – indica-nos o caminho
a seguir. Que o Espírito Santo nos guie na realização dum verdadeiro caminho de
conversão, para redescobrirmos o dom da Palavra de Deus, sermos purificados do
pecado que nos cega e servirmos Cristo presente nos irmãos necessitados.
Encorajo todos os fiéis a expressar esta renovação espiritual, inclusive
participando nas Campanhas de Quaresma que muitos organismos eclesiais, em
várias partes do mundo, promovem para fazer crescer a cultura do encontro na
única família humana. Rezemos uns pelos outros para que, participando na
vitória de Cristo, saibamos abrir as nossas portas ao frágil e ao pobre. Então
poderemos viver e testemunhar em plenitude a alegria da Páscoa.
FRANCISCO
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