"Escrevo a todas as Igrejas e insisto junto a todas que morro de boa vontade por Deus, se vós não mo impedirdes.
Suplico-vos, não vos transformeis em benevolência inoportuna para mim. Deixai-me ser comida para as feras, pelas quais me é possível encontrar Deus.
Sou trigo de Deus e sou moído pelos dentes das feras, para encontrar-me como pão puro de Cristo. Acariciai antes as feras, para que se tornem meu túmulo e não deixem sobrar nada de meu corpo, para que na minha morte não me torne peso para ninguém."
"Santo Inácio, que foi o terceiro Bispo de Antioquia, entre os anos 70 e 107, data do seu martírio.
Naquele tempo Roma, Alexandria e Antioquia eram as três grandes
metrópoles do império romano. O Concílio de Niceia fala de três
"primados": o de Roma, mas também Alexandria e Antioquia participam,
num certo sentido, a um "primado".
Santo Inácio era Bispo de Antioquia, que hoje se encontra na
Turquia. Foi em Antioquia, como sabemos
dos Atos dos Apóstolos, que surgiu uma comunidade cristã florescente: o
primeiro Bispo foi o apóstolo Pedro assim nos diz a tradição e ali "pela
primeira vez, os discípulos começaram a ser tratados pelo nome de
"cristãos"" (At 11, 26).
Eusébio de Cesareia, um historiador do IV século, dedica um
capítulo inteiro da sua História
Eclesiástica à vida e à obra
literária de Inácio. "Da Síria", ele escreve, "Inácio foi
enviado a Roma para ser lançado às feras, por causa do testemunho por ele dado
a Cristo. Realizando a sua viagem através da Ásia, sob a vigilância severa dos
guardas" (que ele chamava "dez leopardos" na sua Carta aos Romanos 5, 1), "nas várias cidades por
onde passava, com pregações e admoestações, ia consolidando as Igrejas;
sobretudo exortava, muito fervorosamente, a evitar as heresias, que na época
começavam a pulular, e recomendava que não se separassem da tradição
apostólica".
A primeira etapa da viagem de Inácio rumo ao martírio foi a cidade
de Esmirna, onde era Bispo São Policarpo, discípulo de São João. Ali Inácio
escreveu quatro cartas, respectivamente às Igrejas de Éfeso, de Magnésia, de
Tralli e de Roma. "Tendo partido de Esmirna", prossegue Eusébio,
"Inácio chega a Tróade, e de lá enviou novas cartas": duas às Igrejas
de Filadélfia e de Esmirna, e uma ao Bispo Policarpo. Eusébio completa assim o
elenco das cartas, que chegaram até nós da Igreja do primeiro século como um
precioso tesouro.
Lendo estes textos sente-se o vigor da fé da geração que ainda
tinha conhecido os Apóstolos. Sente-se também nestas cartas o amor fervoroso de
um santo. Finalmente de Tróade o mártir chegou a Roma, onde, no Anfiteatro
Flávio, foi lançado às feras.
Nenhum padre da Igreja expressou com a intensidade de Inácio o
anseio pela união com Cristo e pela vida n'Ele.
Por isso lemos o trecho do Evangelho sobre a vinha, que segundo o
evangelho de João é Jesus. Na realidade, afluem em Inácio duas
"correntes" espirituais: a de Paulo, que tende totalmente para a união com Cristo, e a de João, concentrada
na vida n'Ele. Por sua vez, estas duas
correntes desembocam na imitação de Cristo, várias vezes proclamado por
Inácio como "o meu" e "o nosso Deus". Assim Inácio
suplica os cristãos de Roma para que não impeçam o seu martírio, porque está
impaciente por "unir-se a Jesus Cristo". E explica: "É bom para
mim morrer indo para (eis) Jesus Cristo, em vez de reinar até aos
confins da terra. Procuro a Ele, que morreu por mim, quero a Ele, que
ressuscitou por nós... Deixai que eu seja imitador da Paixão do meu Deus!" (Aos Romanos 5-6).
Pode-se captar nestas expressões fervorosas de amor o elevado "realismo"
cristológico típico da Igreja de Antioquia, como nunca atento à encarnação do
Filho de Deus e à sua humanidade verdadeira e concreta: Jesus Cristo, escreve
Inácio aos Esmirnenses, "pertence realmente à estirpe de David", realmente nasceu de uma virgem", "realmente foi crucificado por nós" (1, 1).
A propensão irresistível de Inácio para a união com Cristo funda
uma verdadeira "mística da unidade". Ele próprio define-se "um
homem ao qual foi confiada a tarefa da unidade" (Aos Filadelfenses 8, 1).
Para Inácio a unidade é antes de tudo uma prerrogativa de Deus,
que existindo em três Pessoas é Uno em absoluta unidade. Ele repete muitas
vezes que Deus é unidade, e que só em Deus ela se encontra no estado puro e
originário. A unidade a ser realizada nesta terra pelos cristãos é unicamente
uma imitação, o mais possível conforme com o arquétipo divino.
Desta forma Inácio chega a elaborar uma visão da Igreja, que
recorda de perto algumas expressões da Carta
aos Coríntios de Clemente
Romano. "É bom para vós", escreve por exemplo aos cristãos de
Éfeso, "proceder juntos de acordo com o pensamento do bispo, o que já
fazeis. De fato, o vosso colégio dos presbíteros, justamente famoso, digno de
Deus, está assim harmoniosamente unido ao bispo como as cordas à cítara. Por
isso, na vossa concórdia, e no vosso amor sinfônico Jesus Cristo é cantado. E
assim vós, um por um, tornais-vos coro, para que na sinfonia da concórdia,
depois de ter tomado o trono de Deus na unidade, canteis a uma só voz" (4,
1-2).
E depois de ter recomendado aos Esmirnenses que "nada
empreendessem do que diz respeito à Igreja sem o bispo" (8, 1), diz a
Policarpo: "Eu ofereço a minha vida por aqueles que são submetidos ao
bispo, aos presbíteros e aos diáconos. Que eu possa com eles ter parte em Deus.
Trabalhai juntos uns para os outros, lutai juntos, correi juntos, sofrei
juntos, dormi e vigiai juntos como administradores de Deus, seus assessores e
servos. Procurai agradar Àquele pelo qual militais e do qual recebeis os
favores. Que nenhum de vós seja desertor. O vosso batismo permaneça como um
escudo, a fé como um elmo, a caridade como uma lança, a paciência como uma
armadura" (6, 1-2).
Complexivamente podemos ver nas Cartas de Inácio uma espécie de dialética
constante e fecunda entre dois aspectos característicos da vida cristã: por um
lado a estrutura hierárquica da comunidade eclesial, e por outro a unidade
fundamental que liga entre si todos os fiéis em Cristo. Portanto, os papeis não
se podem contrapor. Ao contrário, a insistência sobre a comunhão dos crentes
entre si e com os próprios pastores é continuamente reformulada através de
eloquentes imagens e analogias: a cítara, as cordas, a afinação, o concerto, a
sinfonia. É evidente a responsabilidade peculiar dos bispos, dos presbíteros e
dos diáconos na edificação da comunidade. Para eles é válido antes de tudo o
convite ao amor e à unidade. "Sede um só", escreve Inácio aos
Magnésios, retomando a oração de Jesus na Última Ceia: "Uma só súplica,
uma única mente, uma só esperança no amor... Acorrei todos a Jesus Cristo como
ao único templo de Deus, como ao único altar: ele é um, e procedendo do único
Pai, permaneceu unido a Ele, e a Ele voltou na unidade" (7, 1-2).
Inácio, o primeiro na literatura cristã, atribui à Igreja o adjetivo
"católica", isto é "universal": "Onde estiver Jesus
Cristo", afirma ele, "ali está a Igreja" (Aos Esmirnenses 8, 2).
E precisamente no serviço de unidade à Igreja católica, a
comunidade cristã de Roma exerce uma espécie de primado no amor: "Em
Roma ela preside digna de Deus, venerável, digna de ser chamada beata...
Preside à caridade, que tem a lei de Cristo e o nome de Pai" (Aos Romanos, Prólogo).
Como se vê, Inácio é verdadeiramente o "doutor da
unidade": unidade de Deus e unidade de Cristo (não obstante as várias
heresias que começavam a circular e dividiam o homem e Deus em Cristo), unidade
da Igreja, unidade dos fiéis "na fé e na caridade, das quais nada há de
mais excelente" (Aos Esmirnenses 6,
1).
Para concluir, o "realismo" de Inácio convida os fiéis
de ontem e de hoje, convida todos nós a uma síntese progressiva entre:
-
configuração com Cristo (união com Ele, vida n'Ele) e,
-
dedicação à sua Igreja (unidade com o Bispo, serviço generoso à
comunidade e ao mundo).
Em resumo, é necessário alcançar uma síntese entre:
-
comunhão da Igreja no
seu interior,
-
emissão proclamação do Evangelho para os
outros, até quando, através de uma dimensão se manifeste a outra, e os crentes
"possuam" cada vez mais "aquele espírito indiviso, que é o
próprio Jesus Cristo" (Aos
Magnésios 15).
Implorando do Senhor esta "graça de
unidade", e na convicção de presidir à caridade de toda a Igreja (cf. Aos Romanos, Prólogo), dirijo a vós os mesmos votos
que concluem a carta de Inácio aos cristãos de Trali: "Amai-vos uns aos
outros com um coração indiviso. O meu espírito oferece-se em sacrifício por
vós, não só agora, mas também quando tiver alcançado Deus... Que possais ser
encontrados em Cristo sem mancha" (13). E rezemos para que o Senhor nos
ajude a alcançar esta unidade e a sermos encontrados finalmente sem mancha,
porque é o amor que purifica as almas.”
Papa Bento XVI 14/03/2007
“A Igreja celebra Santo Inácio de Antioquia a 17 de outubro. A escolha do evangelho da celebração alude à lenda que pretende ver naquela criança que Jesus tomou nos braços, em Mc 9,33, o menino Inácio. Daí ser cognominado “Theóforos”, isto é, “Portador de Deus”.
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