terça-feira, 30 de agosto de 2016

Beata Maria Ràfols

A história de Maria Ràfols é de uma mulher que fez grandes coisas através do silêncio e a da humildade, feita toda caridade e em pobreza, tanto material como espiritual. A sociedade da época a pagou com o desprezo, o cárcere e o desterro. Teve que esperar a sua morte para se começasse a reconhecer o valor de sua existência. Sua Congregação, atualmente expandida por todo o mundo, se dedica à educação, ao apostolado e à saúde, campos nos quais a mesma se destacou.
Uma cristã autêntica e sublime, porém, também uma mulher forte, valente, empreendedora, de comportamento exemplar com os feridos da guerra, os enfermos do hospital e os meninos da Inclusa.

Maria Ràfols nasceu em Vilafranca de Penedès, em 05 de novembro de 1781, em Molí d'En Rovira, lugar simples e humilde, filha de agricultores catalães.
Pouco depois de seu nascimento e batismo, em 07 de novembro, a família se mudou para outro moinho, o Molì de Mascaró, em Bleda, onde a menina passou sua infância. Não se sabe muito sobre esse período, porém, é provável que fosse pobre e humilde, como qualquer outra menina camponesa.

Muitos testemunhos falam de sua candura e piedade. Em 1794, quando tinha apenas nove anos de idade, morreu seu pai e sua mãe contraiu novo matrimônio, e a família se mudou para Garraf. A situação econômica parece que melhorou, pois há registro de que Maria Ràfols estudou interna em um colégio de Barcelona (Colégio de l'Ordre de Nostra Senyora). Em 1804, morre sua mãe.
Maria devia ter conhecimentos e formação como enfermeira, pois trabalhava nesta função, como voluntária, no Hospital de La Santa Creu de Barcelona – a cargo das Irmãs Hospitaleiras de São João de Deus – quando a encontrou o padre Juan Bonal. Este sacerdote era capelão do hospital e estava buscando religiosos para abastecer o Hospital de Gracia de Zaragoza, que carecia de pessoal adequado para atender aos enfermos, e, requerido pela junta de Zaragoza, reuniu doze homens e doze mulheres que lhe ajudaram em sua tarefa. Já então devia ver em Maria o talento e a personalidade necessárias para tal tarefa, pois ela, com apenas 23 anos, se converteu na superiora desta recém-nascida congregação.

Como e onde tomaram hábito estas doze mulheres? Não se sabe. É provável que fosse o próprio Juan Bonal quem as orientara, lhes dera hábitos e as admitira com os habituais votos de pobreza, obediência e castidade. Porém, estamos falando, pela primeira vez, de uma congregação religiosa feminina que exercerá o apostolado e que terá uma atividade fora das paredes do convento. Neste sentido, Maria Ràfols foi uma pioneira, numa época em que as religiosas ainda não haviam deixado a clausura e que o apostolado até então era negado às mulheres.
A viagem de Barcelona a Zaragoza a realizaram em uma "carroça", com todos os inconvenientes e incômodos da época, chegando em 28 de dezembro de 1804. Nesse mesmo dia vão a prostrar-se diante à Virgem de Pilar, à qual imploraram sua proteção.
O caminho que se apresentava a Maria era duríssimo: tinha apenas 23 anos e devia organizar aquela comunidade e por ordem no Hospital de Gracia, um "mundo de dor", onde se amontoavam enfermos, dementes, meninos abandonados e todo tipo de misérias, com uma dotação instrumental lamentável e deficiente, e sendo mal recebidos pelo pessoal do hospital, que fizeram tudo quanto puderam para amargar-lhes a existência, maltratando-os continuamente. De fato, após 03 anos, os homens, cansados da dura experiência, abandonaram. Porém, as religiosas não o fizeram. As mulheres, paradoxalmente conhecidas como "sexo frágil", seguiram adiante, com Maria à cabeça.

De Maria não se conhecem grandes frases. Segundo as crônicas, tudo que fez o fez “com muita prudência e discrição”, sabendo que se arriscava e que não era apreciada em seu entorno. Tudo que fez deve ter feito bem, pois, em pouco tempo, o número das religiosas aumentava. Ela mesma, com algumas irmãs, se apresenta ao exame de “flebotomia”, organizado pela Junta, para demonstrar sua habilidade na prática da sangria, intervenção habitual na medicina de então. Algo impensável para a mulher daqueles tempos, à qual não se permitia intervir diretamente sobre o enfermo.

O início da Guerra do Francês – ou Guerra da Independência – causará um terrível golpe para a cidade de Zaragoza, que padeceu um terrível sítio (1808 – 1809). É aqui onde a madre Ràfols dará mostra de seu heroísmo, onde levará a cabo suas grandes ações, sempre em silêncio, sempre sem que dela se conheçam grandes discursos.
No primeiro sítio, as tropas francesas bombardeiam a cidade, e o Hospital da Graça é destruído e incendiado. Foi necessário organizar o traslado dos enfermos e feridos a um recinto menor, com todo o caos e a aglomeração que era de se supor. Entre balas, canhões e ruínas, expôs uma e outra vez sua vida para salvar aos enfermos e aos feridos, acompanhada por umas poucas irmãs, pedindo esmola e alimento, com grande dificuldade para manter o hospital. Chegou a privar-se do próprio alimento para que o mesmo fosse dado a seus pacientes, porém, não bastava para todos (havia mais de 6000 internos no hospital).
O segundo sítio de Zaragoza foi ainda pior, chegando-se a uma situação desesperadora. Maria tomou uma resolução admirável: foi até ao acampamento do inimigo para pedir ajuda. Os franceses, ao mando do marechal Lannes, estavam acampados no atual bairro de Torrero. Ainda que ela e as religiosas que a acompanharam sofreram, em um primeiro momento, as piadas e insultos dos soldados, finalmente lograram ser atendidas pelo general, homem de reconhecido mau caráter e impiedade, que, porém, ficou comovido pelo ato da madre. Assim é descrita a cena:
“Escolheu a duas irmãs acompanhantes, tomaram em suas mãos uma bandeira de trapo branco, sinal da paz, e percorreram a rua tomando o caminho das portas de Santa Engrácia diretamente até as posições francesas, sem preocupar-se com bombas nem disparos... Imaginem o rosto dos atiradores sitiados quando as viram passar sem deter-se; o rosto dos soldados franceses quando as viram chegar: três freiras com seu hábito negro empunhando uma bandeira branca. Jamais nas batalhas europeias presenciaram tal espetáculo”.

O marechal não só lhes deu alimento e remédios para as vítimas do sítio, como também lhes proporcionou um salvo conduto para que regressassem quantas vezes necessitassem para pedir mais recursos.  E assim foi: Maria regressou uma e outra vez para trazer remédios, ataduras e os restos de comida que não queriam os franceses, para reparti-los em seu hospital. Inclusive chegou a interceder por alguns prisioneiros e lograr sua liberação.

Neste contexto de guerra, se conta um milagre da beata: o chamado “prodígio do cântaro”:
Quando os pacientes do hospital ficaram sem água, Maria não duvidou em ir à capela e pegar um cântaro de barro onde se guardava a água benta e dar de beber a todo aquele que o necessitou. Quando foi devolver o cântaro à capela e o deixou em seu lugar, comprovou maravilhada, que voltava a estar cheio de água, tal e qual o havia pegado.

Não lhe faltaram mais dificuldades. A Junta do hospital, de nova nomeação por parte do governo francês, interferiu notadamente na vida da nascente Congregação. A associação passou a ser formalmente uma Congregação Religiosa e Maria voltou a ocupar o cargo de Superiora até sua renúncia em 1829.

Este é o papel que Maria desempenhou na guerra: um exemplo de amor, caridade e entrega ao próximo, por cima de sua própria vida. No entanto, esse heroísmo humilde e silencioso não seria reconhecido em vida. Não seria até muito depois de sua morte, durante o primeiro centenário dos Sítios de Zaragoza (1908) quando se reconheceria seu impressionante trabalho, sendo proclamada Heroína dos Sítios de Zaragoza.

Acabada a guerra, em 1815, se retira a descansar durante dois escassos meses a Villafranca, seu povoado natal. Deste 1813 até 1834, se põe à frente da Inclusa, departamento de órfãos do hospital, onde permanecerá quase toda sua vida. Os meninos órfãos, os abandonados, serão seu novo campo de atuação. Vigiava os meninos que viviam ao relento, em condições lamentáveis, se ocupava dos meninos da rua, resgatava os recém-nascidos abandonados, os ilegítimos e os filhos de mães solteiras, protegendo-os, defendendo-os, dando-os em adoção ou, inclusive, acolhendo-os ela mesma quando via que não estavam recebendo o tratamento adequado.

Porém, em 1834, se viu golpeada pelo contexto das guerras carlistas. Aquela que havia servido ao próximo e à cidade de Zaragoza, de pronto se viu metida em uma conspiração e foi acusada de alta traição. Como é possível? Tudo foram calúnia e conspiração contra ela. A existência de uma prancha de chumbo que ela usava para bordar flores na roupa, serviu para acusa-la. Duas pessoas, debaixo de falso testemunho, declararam que o sacerdote do hospital, o capelão Nerin, usava essa prancha para fabricar cartuchos e balas, e que era a madre Ràfols quem a havia dado a ele. Acusada de conspirar contra a rainha, Maria foi encarcerada e passou dois meses na prisão da Inquisição, para monjas dominicanas, onde se encerrava por motivos políticos. Apesar de sofrer com resignação ao cárcere e que tenha sido declarada inocente ao comprovar-se que tudo era montagem, incompreensivelmente foi condenada ao exílio:

Aceitando sem protesto a injusta condenação, Maria tão somente solicitou que a trasladassem a uma casa que sua Congregação tinha em Huesca, petição que lhe foi concedida.
No exílio passou seis anos. A situação econômica do hospital de Huesca era também lamentável e apenas havia recursos para subsistir. Neste clima depauperado, a saúde de Maria foi se deteriorando lentamente. Em 1891, temendo encontrar-se próxima a morrer, pede para regressar de novo a Zaragoza e isto lhe é novamente concedido.
Em Zaragoza, retorna à Inclusa e se entrega de novo aos meninos órgãos e abandonados, porém, a enfermidade vai agravando-se e, por fim, morre em 30 de agosto de 1853, rodeada de suas filhas espirituais.

Faltava-lhe pouco para completar 72 anos de idade e 49 como Irmã da Caridade. Sua morte foi como sua vida: cheia de serenidade, paz, carinho e agradecimento a todos os que a haviam rodeado. Não chegou a ver aprovada a Congregação que a mesma havia fundado, porém, seus alicerces eram sólidos. Em 1858, com a autorização e ajuda da rainha Isabel II, se expande até estar presente, na atualidade, em todos os continentes.

Foi beatificada pelo Papa João Paulo II em 16 de outubro de 1994 que na sua homilia disse:

Na Beata Maria Rafols contemplamos a ação de Deus que faz "Heroína da Caridade" para o jovem humilde que deixou sua casa em Villafranca del Penedès (Barcelona) e na companhia de um padre e onze outras meninas, começa uma estrada de serviço aos doentes, seguindo Cristo e dando, como ele, "sua vida em resgate por muitos" (Mc 10, 45).

Contemplativa na ação: este é o estilo e a mensagem que nos deixa Maria Rafols. As horas de silêncio e de oração na tribuna da capela do Hospital de Gracia, em Zaragoza, estendem-se depois ao generoso serviço a todos os excluídos: os doentes, os deficientes mentais, mulheres e crianças abandonadas à própria sorte. Assim, ela diz que a caridade, a verdadeira caridade, tem a sua origem em Deus, que é amor (1 Jo 4, 8).

Depois de passar grande parte de sua vida a serviço do outro,  mortificada e no escondimento, com devoção e ternura, abraçando a cruz, consuma sua entrega final ao Senhor, deixando para a Igreja e, especialmente, para suas filhas, o grande ensinamento que a caridade não morre, nunca desaparece, a grande lição da caridade sem fronteiras, viveu na entrega de todos os dias. Todos os consagrados podem ver nela uma expressão da perfeição da caridade à qual são chamados.

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